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Nem tão adormecida assim

Amanda Vogel Cé


“Se esses poderes os deuses me deram, que seja para as minhas próprias realizações; tornar-me-ei realeza ainda nesta vida ingrata, pois o coração do meu único filho à próxima princesa pertencerá. Fugirei da miséria, poupada da eterna culpa, a princesa que durma isolada, até às três da manhã após duas décadas vivenciadas; deuses, meu filho com um beijo a salvará, na certeza de que quando ela abrir os olhos, terá certeza de todas as decisões a tomar.”

Uma maldição de vinte anos que surgiu do egoísmo de uma bruxa e da sua necessidade de se infiltrar na realeza; contra a promessa de quase dois anos, que nasceu de uma interferência não planejada. Um chamado. Uma surpresa.

Todos os dias, às três da manhã, desde o seu aniversário de dezoito anos, Dara acordava com uma ânsia inexplicável que a levava até o mar que envolvia a sua ilha isolada. A princesa que deveria estar adormecida, esperando seu futuro marido e salvador, não estava tão adormecida assim.

Peterson era o nome dele, do seu verdadeiro amor e desejo, do seu motivo, da sua razão. Filho renegado do mar. A peça extra e nada bem-vinda do tabuleiro de xadrez controlado pela maldição meia-boca.

Era por ele que Dara caminhava porta afora daquela casa caquética e fria, rasgando os pés nos cascalhos, coberta pelo seu manto transparente e azul perolado, refletia as estrelas da noite, a luz da lua, mas nada tão brilhante quanto os olhos dele espelhando o seu reflexo, ansiando a sua chegada, admirando seus pés fortes, regalia que ele ainda não tinha.

Em mais um encontro noturno, Peterson envolveu Dara nos braços, os cabelos compridos platinados tateavam sua pele como plumas, como se não fossem passíveis de estarem fisicamente molhados. Dara só sabia admirar a cauda que ele preferia aderir, porque se fossem para longe do mar, a fraqueza o dominaria. Mas não importava onde estivessem, importava que juntos estavam em casa.

— Sinto seu ressonar daqui a cada dia, aguardo o nosso momento todas as vinte e três horas em que estamos separados.

— E eu vivo a única hora que tenho para viver ao seu lado — ela respondeu, roçando os seus lábios no dele, sentindo o cheiro de sal do mar.

Dara não o conhecia tanto quanto gostaria, mas o que conhecia era suficiente. Se tinha as escamas atritando sua pele, exclamando que estava viva o suficiente para conseguir senti-las, mesmo que apenas uma hora por dia, era nisso que focaria. Se tinha a carne dos lábios dele para morder e sentir o sangue quente resultante do momento de desejo, era disso que viveria. Se os cabelos dele faziam cócegas no seu rosto, pescoço, e ao fim de cada dia, cobriam-na junto com o manto azul perolado, ela sabia que era assim que queria passar o resto da vida. Escolheu Peterson, mesmo que antes de nascer já a tivessem escolhido.

Minutos antes de se despedirem, eles se olharam dessa vez como se fossem se ver logo mais, e não como se aquela pudesse ser a última vez.

— Você sabe o que fazer, minha Dara.

— E que para depois reste apenas a eternidade.

Uma prometida, um renegado. Dara queria acordar de verdade, para sempre, mas jamais viver a vida prometida, amaldiçoada.

Peterson queria virar humano, fugir do que um dia foi, deixar para trás tudo aquilo que negou o que ele era: um sonhador. Ele era a peça que não foi planejada, a variável oculta e camuflada da equação, seu chamado poderoso por socorro despertou Dara pela primeira vez aos dezoito, e pelo entrelaçar do amor que construíram hora após hora, Dara permaneceu sua, dia após dia, das três às quatro da manhã, era até onde a sua força o permitia segurá-la.

Mas aquilo iria acabar em breve.

Tão diferentes e agora com um único objetivo: amar um ao outro, longe, muito longe do que aquilo que os tornou o que eram.

Peterson a beijou, porque eles sempre tinham trocas intensas, rápidas demais para ser o que de fato ansiavam, demoradas demais porque o tempo paralisava ao redor deles, como se esperasse e respeitasse o momento íntimo que casal algum jamais ousou ter à luz do luar, ao úmido do mar, ao roçar da areia e, principalmente, ao enfrentar o impossível e o proibido.

Dara permitiu-se amolecer no colo dele e pegar no sono mais uma vez. Era praxe. As lembranças de cada noite eram cravadas nos grãos de areia que grudavam na sua pele. E, mesmo assim, ela sempre era colocada com cuidado, limpa e confortável no quente dos lençóis que nunca abandonava pelo tempo que desejava.

O próximo despertar seria no seu aniversário de vinte anos, o fatídico grande dia.


***


Para Dara, entre o poder e o querer havia um abismo, uma vida inteira perdida, sendo obrigada a dormir, misturada em sonhos, sonhos com aquilo que ela não sabia se era ou não real. No seu íntimo, sentia que sabia como viver, mas nunca de fato havia vivido.

Mesmo inconsciente, ela sempre soube o que lhe ocorreria quando fizesse vinte anos, e ansiava por isso como se fosse uma obrigação, como se a sua intenção ao ser libertada fosse viver. A vida, e não a droga de um amor forçado. Muito fácil para a bruxa que a amaldiçoou, acreditava que o filho seria louvado e reconhecido por salvar a princesa até então eternamente adormecida.

Teriam uma dívida com um salvador de quinta categoria que os seus pais pagariam sem relutância, e a moeda de troca era a sua mão em casamento.

Ela achava que teria que viver tudo isso até conhecer Peterson, que lhe deu o que ela nem sabia que queria, borboletas no estômago, fervor, pertencimento, mas, principalmente, aquilo que ela sempre sonhou: escolha.

Estar com ele, agora e pela eternidade, era uma escolha dela, deles, e que nunca se arrependeria.

Ainda envolta dos lençóis e do seu manto azul, manteve os olhos fechados quando sentiu mais um despertar do seu sono profundo, sentiu também o calor de um corpo humano, e não o calor gostoso habitual de Peterson, mas sim uma quentura desagradável, desalinhada. Cheirava amargo.

Ainda assim, Dara deixou que os lábios dele encostassem no seu.

— Maldição quebrada, filho da puta! — ela disse entre dentes, abrindo os olhos, agora arregalados, acordados para a vida, e aproveitando o tempo que tinha antes do filho-da-bruxa se recuperar da surpresa.

Ela o esfaqueou direto no peito, macio como fruta mais do que amadurecida. Havia treinado o suficiente com o peito duro de Peterson — que não tinha direito sequer à dor ou à morte. O sangue começou a escorrer por cima dela, o cheiro ferroso a invadiu, ela não dormiria mais, mas naquele momento, quis fechar os olhos e desconectar, esquecer.

— Você esquecerá de tudo isso, meu amor, minha Dara — Peterson apareceu, cumprindo a promessa, banhando-se no sangue impuro, que agora era dele, sua cura, fortalecendo-se fora da água e se tornando o que ambos sonharam juntos por dois anos: vivos, humanos, iguais.

Dara de fato dormiu, tendo as memórias do vermelho-vivo apagadas, e quando acordou, estava tonta, mas no colo do melhor remédio.

— Conseguimos? — perguntou com a voz frágil e seca, mas mesmo desorientada, os braços dele eram a sua casa.

— A nossa vida agora a nós pertence — respondeu ele com a rouquidão de quem também se recuperava, enterrado com o rosto nos cabelos dela.

— E se vierem atrás?

— Não vão ter nada além de um recado para encontrar.

E, com um beijo desorientador, Peterson encerrou aquele assunto entre ambos para o resto da vida


***


Em meio a uma ilha vazia e deserta, uma cabeça decepada descansava na cama que roubou vinte anos da vida de uma princesa, agora não tão pura, agora não tão princesa, mas ainda inocente e ingênua, pronta para descobrir o prazer de viver.

Sem segredos, sem mistérios, apenas no anseio de ser feliz.


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Eu ameiii

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